“Novas Expressões do Território” é uma exposição audiovisual concebida pela Binaural Nodar em 2019 para a Programação Cultural em Rede da Comunidade Intermunicipal de Viseu Dão Lafões, a qual partiu de um conjunto de criações artísticas realizadas a partir de recolhas efetuadas em paisagens e junto de comunidades dos referidos catorze municípios da região, fluindo temáticas e narrativas que propõem dimensões poéticas, não literais, do património cultural local.
PONTES PERENES SOBRE ÁGUAS TEMPORÁRIAS
Trancozelos, Penalva do Castelo
Eis-nos aqui à beira do rio Dão
Em terras do velho termo de Castendo
Do concelho de Penalva do Castelo
De que o excelentíssimo conde de Tarouca foi em tempos donatário.
Esta é uma homenagem às gentes antigas,
Às águas que por aqui correram,
Às histórias que aqui se passaram.
A ponte sempre fica e a água sempre vai.
Lá dizia o velho cura
Que Trancozelos e Trancozelinhos
Estão situadas num bosque cercado de castanheiros nas abas da serra do fojo
E em certos lugares não entra neles o sol no mês de dezembro e Janeiro,
Por estar a serra muito alta.
E logo por baixo dos ditos povos corre o rio Dão,
E o lugar de Lisei está situado d’além do rio Dão,
Dá-lhe o sol todo o dia e tem bastante fruta e castanha, vinho,
E azeite para a terra e boas águas.
O rio sempre corre em direção ao desconhecido
O seu destino é andar e andar,
Mas enquanto anda, o rio lembra e chora
Todos os que o amaram e viveram com ele
Alguns dormindo com os pés dentro de água.
Muitos que já não estando,
Ainda os pressentimos no borbulhar da água limpa
Esse quase silêncio será quiçá a palavra de Deus.
Esse ar divino e forte sempre cruzou o rio,
Os romeiros atravessavam o rio com as suas velas acesas
Em noite de Santa Eufémia
As estranhas luzes e ruídos ouviam-se no silêncio da noite.
Como que a dizer que é nas aldeias que mais se sente o inexplicável.
O rio passa, passa e vê tudo enquanto passa.
Desde essa manhã fria onde nasce
Até ao sereno poente na foz.
Mas ao chegar já correm as suas gotas irmãs,
Nessa genealogia infinita chamada rio,
Marcada por pontes que confirmam a irmandade.
Escreveu o referido velho cura, seguramente à luz da candeia, que a serra desta terra
Tem um quarto de légua de comprida e meio quarto de larga.
Chama-se fojo e o seu temperamento é frio.
É lugar de coelhos, lebres e perdizes.
Essas que saltam e voam à beira das águas do Dão
Esse ribeiro que nasce fraco no Eirado, quatro léguas mais a montante
Segue arrebatado, enchendo-se de água
E pontuando-se de levadas, açudes, moinhos, pisões, lagares e pontes.
Até se meter no rio Mondego perto de Mortágua,
Morte de água, foz.
Aquele velho cura não deixou de referir que a ponte de Trancozelos
Chegou a ter a sua construção interrompida
Por não haver oficiais, oficiais de ofício, por estarem ocupados
Lá na longínqua terra de Mafra a construir as chamadas obras reais.
Vénia portanto. Avançam as obras reais, param as obras plebeias.
Mas que importa isso agora, se o tempo avança e não espera?
A ponte ergueu-se, a ponte foi vivida, a ponte decaiu
Ai os malandros dos miúdos que deitaram as guardas da ponte abaixo,
Só para ver o efeito das pedras aceleradas a cair na água surpreendida.
Mas mesmo isso não importa hoje,
A ponte aqui está, mesmo depois da polémica,
Agora é digna, talvez anónima, mas digna.
Tem memória, tem presente, terá futuro.
Seguramente esta ponte parece aproximar-se da eternidade
Ou pelo menos das sete vidas dos gatos.
Enquanto a água passa pela vida
Esta ponte adquiriu dignidade.
Mesmo não sendo vivida como o foi no passado
Não deixa, por isso, de ser uma ponte perene sobre águas temporárias.
Ficha Técnica
Conceito original: Luís Costa
Registos sonoros e vídeo originais de Luís Costa, Manuela Barile, João Farelo, Liliana Silva e Rui Costa
Edição vídeo: Liliana Silva
Edição sonora, textos e voz: Luís Costa
Concepção do percurso expositivo: Luís Costa e Liliana Silva
Ilustrações: Liliana Silva
Produção executiva: Diana Silva