“Cambra da Serra”: Como também é conhecida, ao longo dos tempos, pelas suas paisagens de verde e granito, pela frescura dos seus rios e, sobretudo pelas vozes cristalinas dos seus cantares.
Através dos campos, subindo ladeiras, viajando no vento ou sussurrando na obscuridade das casas, sons e letras ritmavam, ora forte, ora suave, os trabalhos nos campos, nas eiras, convidavam ao descanso, dando lugar à alegria, às festas e romarias, louvavam o Senhor e embalavam ternamente os sonhos dos pequenitos.
Em 1988, um grupo de vozes organizou-se em torno de uma vontade comum: rebuscar no tempo e nas memórias ainda presentes as letras, as vozes, os trajes, os gestos e os sentimentos de outros tempos. Foi semente que deu fruto, visto que, desde essa altura, nunca mais passou a vontade de recolher, dar vida e preservar o que estava adormecido no tempo.
O grupo inicial cresceu e vestiu-se ao som das letras e dos ritmos que ia recolhendo e ensaiando. Já o “Grupo de Trajes e Cantares de Cambra” subiu ao palco, pela primeira vez, em agosto de 1988, nas Festas da Freguesia de Cambra e, a partir daí, tem viajado por perto e por longe, num crescendo de entusiasmo e trabalho.
Todos envergam os trajes tradicionais do século XIX, recolhidos através dos testemunhos dos mais idosos, de algumas fotografias antigas e de alguns exemplares conservados nas velhas arcas de quem, teimosamente, gosta de conservar vestígios palpáveis do passado. Esses trajes são essencialmente de trabalho, domingueiros ou de saída.
O reportório do Grupo é, também ele, bastante variado. Conta com cantigas de trabalho (ceifas, mondas e sachas, malhas, linho, desfolhadas), de romaria e religiosas (a famosa e carismática Sta. Combinha, a Sta. Maria, a Senhora das Dores e o S. João). Algumas delas têm acompanhamento instrumental, mas o que mais carateriza este Grupo é o coro a quatro vozes: homens, começo, descante e alto.
Não podemos deixar de fazer algumas referências ao modo de cantar desta região. De fato, sem grande dificuldade, é possível delimitar geograficamente uma área, onde influências dos cantares aprendidos nos trabalhos sazonais por terras do Ribatejo, Alentejo, Alto-Douro e Aveiro (seca do bacalhau) e reminiscências dos cânticos religiosos gregorianos se reúnem e dão origem a um cantar especificamente regional. Assim, desde o cimo da Penoita, descendo a encosta noroeste do Caramulo em direção às Talhadas verificamos certas particularidades na forma de cantar.
Em relação ao Norte, sem nos querermos emancipar, constatamos que o Vouga funciona como um crivo que, deixando passar uns elementos, retém outros. E são os elementos que ficam que caraterizam, verdadeiramente, os nossos cantares. Sem atribuir essas particularidades às “propriedades e qualidades das águas locais” como popularmente se diz, brincando, poderemos dar um ou dois exemplos que ilustrarão o que atrás se disse. Assim, cabe uma referência às terminações nasaladas que, sem dúvida, são bem próprias dos cantares de Cambra. Têm a dupla finalidade de dar consonância/conjugação às vozes e adequar as rimas.
Aqui vimos cantar os Reis
Ai viva lá Sr. Manuel
Ai quando põe o seu chapéu
Ai no meio da sua sala
Ai parece um anjo do céu.
Ai viva lá Sra. Rosa
Ai quando põe o seu cordão
Ai no meio da sua sala
Ai parece um manjericão.
Ai via menina Emília
Ai com raminhos de salsa crua
Ai debaixo sua cama
Nasce o sol e nasce a lua.
Aqui vimos cantar os Reis
Ai boas festas vimos dar
Ai se não for as boas festas
Ai faz favor de desculpar.