A Binaural/Nodar levou a cabo entre 2015 e 2018 uma longa investigação sobre o ciclo do linho na aldeia de Várzea de Calde (freguesia de Calde, município de Viseu), em estreita colaboração com o Museu do Linho de Várzea de Calde. Como resultado dessa investigação, co-financiada simultaneamente pelo Programa Viseu Cultura do Município de Viseu e pelo Programa Europa Criativa (rede Tramontana), foi publicado o livro bilíngue (português e inglês) “Várzea de Calde: Uma aldeia tecida a linho”, foi lançado o CD “Cancioneiro do linho e da vida rural” do Grupo Etnográfico de Várzea de Calde e foram efetuados dezenas de registos sonoros e audiovisuais, os quais fazem agora parte do Arquivo Digital Binaural Nodar e do Arquivo Viseu Rural (http://www.viseururalmedia.org)
Até há meio século atrás, não existia aldeia beirã onde não fosse cultivado o linho. O cultivo do linho respondia às necessidades ancestrais de abrigo, proteção e conforto do corpo (roupas de vestir ou de cama), sendo que o mesmo existia, tal como acontecia com as restantes produções agrícolas e pecuárias, no contexto de uma economia de auto-subsistência, na qual a maioria da produção de tecidos era para o uso da família, sendo igualmente comum que o trabalho (por exemplo, fiar ou tecer) ou o produto final (os tecidos) pudesse ser trocado por outros trabalhos ou bens, ou ainda, que os excedentes fossem vendidos nas feiras que existiam nas aldeias ou vilas principais da região.
Em 30 de Agosto de 2016 foram gravadas as fases do ciclo do linho correspondentes ao maçar, tascar e sedar, acompanhadas de cantares tradicionais locais como “Aquele homem que ali vai”, “Ó ribeira, ó ribeira” ou “A carvalha da eirinha”.
Gravação de Manuela Barile. Edição de Liliana Silva.
MAÇAR O LINHO
A primavera já lá vai, os dias vão ficando quentes e longos e, chegados a julho ou agosto, o linho já está seco para ser maçado. Cada mulher trouxe de casa o seu instrumento central deste processo, a maça, ou seja, um rolo de madeira com um cabo ou pega mais estreito, ideal para bater com força para moer a casca (parte lenhosa) do linho em pedaços (arestas) e assim separar a fibra do linho.
Na aldeia de Várzea de Calde ainda é possível encontrar em vários locais os maçadoiros, grandes lajes horizontais de granito onde tradicionalmente se maçava o linho, normalmente debaixo de grandes exemplares de carvalho-roble (quercus robur) para que houvesse sombra, uma vez que o processo de maçar é longo, podendo demorar largas horas, dependendo do número de mulheres “rogadas” e da quantidade de linho a maçar.
A operação é coordenada pelas mulheres mais velhas, que vão dando instruções ao grupo, e é acompanhada pelo cantar da cantiga “Maçadeiras do meu linho”, sincopado com o bater em uníssono da maça na laje. Cada mulher segura com uma mão uma maçadoira (mão-cheia de linho seco), enquanto que, como a outra mão, bate com vigor no linho sobre a pedra de granito. De vez em quando, vira-se a maçadoira ao contrário e bate-se novamente.
Depois de bem batido o linho, cada maçadoira é dividida em estrigas (mão-cheias mais pequenas) que são esfregadas e torcidas para partir e soltar ainda mais arestas.
No final do processo, o linho seco e maçado é guardado até à nova tarefa, a tascadela (como se diz em Várzea de Calde), ou estrigadela, ou tasquinhada, ou ainda espadelagem.
TASCAR O LINHO
No mesmo dia em que se maçou o linho, as mulheres do Grupo Etnográfico de Trajes e Cantares do Linho de Várzea de Calde procederam à tascadela, ou seja, à separação das arestas (parte lenhosa) e dos tomentos (restos de linho usados para fazer pano grosseiro com que se fazia sacos para os cereais, mantas para a apanha da azeitona e o forro de colchões) do linho mais fino, com a ajuda da espadela e do cortiço de tascar.
A espadela é um cutelo grande e de madeira leve, formado por uma lâmina em forma de trapézio arqueado e por uma pega. O cortiço é a colmeia de cortiça (casca do sobreiro) que se usava no passado, antes da introdução das colmeias em caixas sobrepostas, e que aqui serve para fixar o linho enquanto se aplicam pancadas fortes com a espadela.
O tascar o linho decorre igualmente no exterior à sombra e envolve duas fases, a primeira denominada abaixar, ou seja tirar as arestas maiores e, a segunda, limpar, ou seja tirar os restos de arestas ficando o linho macio. Com uma mão segura-se numa estriga de linho e coloca-se a mesma sobre o cortiço; com a outra mão, aplicam-se pancadas incisivas e fortes, à medida que se vai virando a estriga, para que o linho fique limpo por igual. No final, são separados os tomentos do linho mais fino e guardados em caixas ou sacos para que, posteriormente, cada mulher possa usar a quantidade que lhe convém para prosseguir as restantes fases do ciclo, as fases caseiras, as quais não dependem da presença de outras mulheres e podem, inclusive, ser desenvolvidas em vários momentos do ano.
SEDAR O LINHO.
A sedagem ou assedagem é uma atividade feita em casa que consiste em passar suavemente cada estriga de linho pelo sedeiro, de forma a separar as fibras longas, o linho, das fibras mais curtas, a estopa e a estopinha.
O sedeiro consiste numa tábua retangular de madeira de cerca de 70-80 cm de comprimento e 20 cm de largura, a qual em Várzea de Calde é disposta na vertical, tendo um orifício em semicírculo com a função de segurar a tábua com o pé e, na sua parte superior, é revestida por uma chapa de metal, cravejada de filas de dentes aguçados, com distâncias variáveis entre si.
A estriga de linho é passada alternadamente pelo sedeiro pelas suas duas extremidades, sendo que, ao ser passado pelos dentes mais afastados do sedeiro, as fibras mais grossas ficam do outro lado do pente formando a estopa. Ao repetir o mesmo trabalho, passando a estriga pelos dentes mais juntos do sedeiro, algumas fibras ainda se soltam, formando a estopinha.
Depois de limpas e separadas por tipo de pureza, linho, estopa e estopinha, as fibras da mesma qualidade são entrançadas sobre si e amarradas com um nó, sendo posteriormente guardadas em cestos ou caixas até serem fiadas.