Os Martírios do Senhor de Várzea de Calde enquadram-se na tradição popular de cantos quaresmais que preparam as comunidades para “sentirem” o sofrimento de Jesus Cristo, o qual culminou com a sua crucificação e posterior ressurreição. No concelho de Viseu e concelhos vizinhos existem muitas variações desta tradição, desde logo na sua designação: Cantar às Almas Santas, Amentação das Almas, Encomendação das Almas e, no caso de Várzea de Calde, Martírios do Senhor. As variantes também podem ser em termos de género: em algumas aldeias como em Várzea de Calde cantam os homens e noutras aldeias cantam as mulheres e, também, em termos da própria dinâmica espacial: em algumas localidades os grupos cantam em uníssono num único local e em Várzea de Calde efetuam percursos que variam consoante o dia do período quaresmal.
Em Várzea de Calde, os Martírios do Senhor cantam-se todos os dias da Quaresma, até Quinta-Feira Santa e foram retomados a partir de 1993, depois de um interregno de algumas décadas devido à emigração de muitos dos homens da aldeia. Como nos contou Herculano Duarte Gonçalves, foi ele próprio, juntamente com Leonel da Cruz Lopes, o impulsionador do reavivar desta tradição, a qual, desde então, nunca mais se interrompeu.
De particular interesse constitui a movimentação dos grupos, os quais cantam de forma itinerante, efetuando em cada dia um de vários percursos pré-determinados, gerando uma paisagem sonora específica, tendo em conta as características das ruas, becos ou largos por onde passam e, naturalmente, das condições atmosféricas de cada noite. De notar que os cânticos começam às 20h30 ou 21h00, consoante o dia calhe antes ou depois da mudança de hora legal da Primavera que acontece no último fim de semana do mês de Março.
No dia em que a gravação sonora foi efetuada, 1 de abril de 2025, estavam presentes 16 homens que começaram os cânticos no cruzamento da Rua da Fonte Velha com a Rua do Marralheiro e com a Rua da Comareira, onde existem umas ancestrais alminhas. Quatro grupos de quatro elementos posicionaram-se em quatro pontos ao longo da Rua da Fonte Velha em direção à Capela de São Francisco, sendo que o primeiro grupo começou por cantar a primeira quadra e quando terminou, deu imediatamente lugar ao segundo grupo que cantou a segunda quadra. Nesse momento, o primeiro grupo caminhou para se posicionar-se na quinta posição, a uma certa distância do quarto grupo. Com este interessante esquema de posicionamento, o efeito sonoro gerado foi de um cantar que quase literalmente “viajou” rua abaixo, terminado no Largo do Senhor da Boa Morte.
No Largo de São Francisco, os grupos de quatro homens distribuíram-se de forma mais variada, um grupo num terreno por cima da fonte velha (ou fonte de São Francisco), um segundo grupo junto ao início da Rua Direita e um terceiro grupo junto ao início da Rua das Quintas. Depois de continuarem por essas duas ruas, os três grupos juntaram-se no Largo do Senhor da Boa Morte, cantando em uníssono algumas quadras finais.
Para mais informações sobre a tradição dos Martírios do Senhor, o Município e Viseu publicou em 2024 um livro da série “Tradições de Viseu”, escrito por Alberto Correia e que conta com a transcrição completa do conjunto de cânticos, para além de uma significativa quantidade de informação e de bibliografia sobre esta temática.
Gravação efetuada por Luís Coisa com gravador Zoom F8 e dois microfones Rode NTG2 com protetor de vento, os quais iam sendo orientados para dois pontos distintos, de forma a criar uma paisagem sonora que captasse a impressão de espacialidade que esta tradição incorpora.