Canção de Nascimento: Uma exploração cultural cruzada
Dennis Báthory-Kitsz e Stevie Balch

Graça sublime, de som tão suave,
Salvou um pobre homem como eu.
Andava perdido, mas encontrei-me,
Andava cego, mas agora vejo.

– John Newton, 1725-1807

Ao começar a nossa pesquisa sobre canções ligadas à natividade, no sentido de as trazer para o contexto do nascimento moderno e a partir delas criar novas peças sonoras, estávamos longe de imaginar que a nossa descoberta envolveria mais percursos que objectos.

O primeiro percurso que fizemos foi precisamente em Nodar. Esse percurso desenhava-se por montanhas e vales, onde há encostas em socalcos feitos de muros de pedra, aldeias aninhadas em recantos e no topo das serras, um mistério de caminhos estreitos, e vinhas em socalcos que descem no interior dos vales formados pelos rios e, à medida que vão descendo, vão diminuindo e estreitando até chegarem a um caminho empedrado sobre o qual pendem videiras verdes.

Antes de haver canções já Nodar era um milagre sonoro: vento, pássaros, chocalhos das cabras, portões, trincos, passos na calçada. E de todos dominava o curso da água – a pingar, a correr no rio, a chover. Caía pelos montes, pelas ruas calcetadas, atravessando as casas, para as cisternas, através de aquedutos, para a terra e para o rio, para as vinhas, as uvas, o vinho. A água falava-nos – cantava-nos – a cada paragem no seu percurso.

A água constituiu desde logo uma forte atracção – literalmente, não tivesse eu caído ao rio Paiva desde uma das margens. O baptismo no rio libertou-me de mim mesmo para, a partir dos sons da água, sinos, um portão enferrujado e a voz da Manuela Barile, criar a primeira e última peça eletroacústica da residência, “Three Songs for Manuela” (“três canções para a Manuela”). Embora tivéssemos continuado com as gravações do meio ambiente, o nosso trabalho deslocou-se para a pesquisa de canções.

Fizemos entrevistas às mulheres de Nodar na esperança de que se recordassem canções ligadas à natividade – mas tal não aconteceu, foi há demasiado tempo, as parteiras há muito que desapareceram, os partos decorriam agora nos hospitais.

Houve no entanto algumas canções – canções de embalar e de celebração, do tempo, da infância, do amor e da colheita. Donzília Duarte foi a primeira a cantar; possuía um timbre rico e transparente e as canções revelavam-se ora em tonalidades maiores, ora de carácter modal. No conjunto das suas canções havia tal simplicidade, tal pureza, que no final de cada uma nos sentíamos mais leves na nossa tarefa artificial de Registar Algo.

Tivemos ainda outra dádiva – duas senhoras de idade de Candal cantaram para nós enquanto coziam o pão. Apenas duas mulheres sabiam ainda esta canção em três partes – vozes trémulas de uma beleza arrepiante, em harmonias simples, misturando tonalidades maiores e modais ao mesmo tempo que se elevavam até a uma sétima melódica. Isto foi a génese do nosso registo definitivo de Nodar, o saber ligado à música, ao trabalho e à vida em apenas um minuto, alterando a nossa premissa para, nas palavras da Stevie: “pão e natividade”, e nas minhas, “voz e canção.”

Outras canções surgiram. A Piedade Tavares cantou-nos um verso e a Donzília e sua mãe, uma e depois outra, conseguiram no final cantar cerca de vinte canções. A mãe tinha uma voz roufenha no falar, mas suave e leve no cantar. Canções de memória, recriadas no meio de risos, em família.

Não tardou muito até recebermos uma nova surpresa: depois de guiarmos por um caminho estreito e sem luz, até à aldeia mais próxima, as mulheres de Sequeiros cantaram num delírio que ultrapassava o mais delirante dos coros cristãos americanos de “sacred harp” (“harpa sagrada”). Com pontes ocasionais de harmonia paralela, cantava-se em uníssono, com base em frases, mudando de escalas maiores para escalas menores a meio de muitas das canções. As senhoras que assistiam sentadas juntaram-se ao grupo num determinado momento, e houve duas meninas igualmente a cantar. Canções para todo o tipo de assuntos, houve até uma “cantiga ao desafio” de contornos obscenos, com duas mulheres a cantar mascaradas de homens.

Noutro local encontrámos algo que excedeu as nossas expectativas. Um novo percurso, desta vez atravessando para o outro lado da serra até Manhouce, para ouvir a Isabel Silvestre e o seu coro. Estas vozes tinham um treino que o grupo de Sequeiros não tinha, mas a mesma presença e claridade nas harmonias paralelas. Depois de uma das suas apresentações públicas, a Isabel e o seu coro interpretaram uma bela e misteriosa canção de embalar de Natal só para nós. Com essa canção ainda presente nas nossas mentes fizemos o caminho de regresso pela serra, onde parámos para ver a paisagem de uma igreja antiga.

Em Nodar vivemos num mundo que atravessa os tempos – usávamos computadores portáteis mas lavávamos a roupa no tanque de água fria e estendemo-la para secar ao sol. Do tanque ouvíamos o chocalhar das cabras enquanto um pónei local observava aquilo que fazíamos. As pessoas da aldeia trabalhavam os campos em socalcos, chegava até nós o som da enxada e das sementes de batata a cair nas covas desenhadas na terra. Os pequenos cordeiros lamentavam pelas suas mães, pois tinham que se manter separados, longe de predadores.

Ao sair do nosso mundo rural de Vermont para o mundo rural de Nodar, fomos escrevendo os textos do nosso projecto, o meu influenciado por uma borboleta camuflada no granito da casa:

Ver aquilo que nos esquecemos de ver,
Ouvir aquilo que nos esquecemos de ouvir,
Cantar aquilo que nos esquecemos de cantar,
Destapar aquilo que se esconde à vista de todos,
Encontrar beleza em nós próprios,
nos nossos campos
nas nossas casas
nas nossas cidades
nos nossos lugares
Padrões e ritmos que unem a nossa experiência.

Entretanto, Stevie explorou o significado e integração entre a casa e a canção:

Da nossa casa, nós cantamos
De cada um de nós, nós cantamos
Da nossa história, nós cantamos
Entre pedras, nós cantamos
Do amor, nós cantamos
Da saudade e da perda, nós cantamos
Para os pequeninos, nós cantamos
Com gratidão, nós cantamos
Para amanhã, nós cantamos
Juntos, nós cantamos

Traduzimos nós e o Luís corrigiu. E agora deparávamo-nos com palavras, sons e imagens dispersas que representavam a direcção que o projecto tinha tomado. No entanto, não havia qualquer canção ligada ao nascimento e mais nada para além de umas poucas composições eletroacústicas e variações sobre a canção do pão. O que aprendemos com isto? Qual foi o resultado? Seríamos encarados como intrusos que tinham uma visão distorcida sobre a aldeia e os seus habitantes? Estaríamos a insultar alguém?

E assim procurámos a Tia – tia Ilda Duarte Paiva – residente desde sempre em Nodar, cuja presença sempre nos iluminou. A Tia não cantou e as suas palavras não as compreendíamos. Mas a sua maneira de estar e a sua presença, era o nosso maior testemunho. Quando cozemos o pão, quisemos que ela levasse um pouco para si. Quando lavávamos a roupa, ela estava lá. E assim fomos apresentar o nosso vídeo no café do Fernando, cheio com a curiosidade do público. Um pescador, alguns turistas, e um homem de Sequeiros com uma bengala bebiam e conversavam. Os cães lutavam e ladravam. Mas quando o canto dos pássaros presente no vídeo apareceu na música com a voz da Donzília, o café ficou silencioso. No fim, houve reacções sinceras – inclusive da Tia, que surgiu nas nossas costas.

Esta residência em Nodar foi o início de uma primeira fase na pesquisa de canções, outrora tão importantes no dia-a-dia das mulheres, e de canções ligadas à natividade em particular. A residência proporcionou um cenário de enorme riqueza para o nosso trabalho. Reunimo-nos, gravámos e registámos mais de sessenta canções. Nesta bela aldeia de terras em socalcos, criámos algumas novas peças electrónicas e arranjos acústicos, captámos horas de gravações do som ambiente, no local e durante os nossos passeios sonoros.

A nossa pesquisa artística em e pelos os trilhos de Nodar foi um êxito – mas a nossa pesquisa de canções da natividade continua. Tornou-se ainda mais evidente para nós que a tradição da canção ligada ao nascimento se está a perder. A capacidade da mulher dar à luz contando apenas com o apoio de outras mulheres e das suas canções – confiando no seu corpo – também se está a perder. Mesmo uma única canção poderá ajudar a renovar a nossa atenção para a expressão musical do nascimento no mundo moderno.

Dennis Báthory-Kitsz (EUA) nasceu em 1949 e é compositor, autor, editor, professor e tecnólogo. Está envolvido no avanço das artes e tecnologia de um ponto de vista humanista e experimental. Dennis compôs música para espectáculos de ‘vaudeville’, orquestras, esculturas sonoras, solistas, fita magnética e electrónica, dança, ambientes multimédia e eventos de performance. Decidiu profissionalizar-se na área da música e do som quando dirigiu o Dashuki Music Theatre (‘Plasm over ocean’ e ‘Stoneworld/Grey’) e Il Gruppo Nuke Jitters (‘Echo’). Dirige a extremamente eclética cooperativa de artistas Malted/Media e compôs música para orquestra, grupos de câmara e solistas tendo alguns deles realmente tocado a sua música. A sua peça ‘Detritus of Mating’, uma paisagem sonora electroacústica, tem a duração de 27 anos. Compôs recentemente as peças ‘iskajtbrz’ para sons electrónicos; ‘Spammung’, para voz e electrónica; ‘LiquidBirds’ para 3 theremins, 3 vozes, e vídeo; ‘Northsea Balletic Spicebush’ para contrabaixo solo; ‘Genial Music’ para cordas, piccolo, e glockenspiel; e ‘Glossolalia’, uma série de estudos. Vive em Northfield, Vermont. A sua música é publicada pela Westleaf Edition.

Stevie Balch (EUA, 1950) é mãe, parteira, enfermeira, autora e editora. Acompanhou o nascimento de centenas de bebés desde o início dos anos 70 como uma das parteiras pioneiras no Vermont, juntando conceitos novos e ancestrais de práticas obstréticas, inspirados pelas ideias de Michel Odent, Cornelia Enning, e muitos outros. A sua atenção em relação a tradições em vias de desaparecer no seu país natal levou-a à noção de que as canções de nascimento, perdidas pela medicalização das práticas nos EUA, poderão estar a florescer noutros lugares do mundo.